Preâmbulo para uma exposição
Exposição de Ana Lima-Netto
Curadoria: Fernando Ribeiro, Jean-Michel Albert e Jaime Silva
Não se sabe bem por onde começar porque, se a convicção pode ser imensa, o destino é invulgar e caprichoso. E, no entanto, sobrelevando expectativas, arrostando com a corrente dos dias, algo se move nas entrelinhas de um texto descosido e já desconectado da Palavra e da Civilização, que ainda nos permite evocar o desejo de Absoluto e da circunstância, nada despicienda, de nos sentirmos e sabermos humanos. Vestem-nos hoje de fatos multicolores, propõem-nos interpretações de garantida desmesura, futuros de exploração espacial e dos seus recursos próprios, a fim de alimentar impérios e interesses multímodos nas áreas financeiras e das indústrias inovadoras. Seja! Mas não advoguem felicidade, respeito pela compreensão e definição do humano, porque essa foi a função da PALAVRA, no tempo que lhe coube. Não parecerá a muitos mas, este é, de novo, o tempo do deserto que foi anunciado, como se sabe, pela barbárie nazi. Que podemos nós artistas fazer, que eventualmente teremos sido tocados pela vontade de consubstanciar em Obra, dúvidas e incertezas, ou talvez a alegria do Canto e da comum Esperança? Cada obra assumida em percurso singular, abre possibilidades de reflexão e de discussão pública. Cada artista nessa pessoal assunção, arrosta com as dificuldades inerentes à diferença idiossincrática, apenas tendo de saber lidar consigo mesmo. As cedências de circunstância, não advogam uma boa prática artística, pois apenas são induzidas pelo facilitismo de uma sociedade que não entende a Arte como ela o é, e só pode ser: abertura conceptual e anímica, na criação de um mundo de emoções outras. Designada na forma interrogativa: “NADA DE NOVO DEBAIXO DO CÉU?”, Ana Lima-Netto nesta sua exposição individual, invoca a leitura e interpretação do Ecclesiastes, onde encontra a ideia de ciclo dos Elementos e de ligação entre todas as coisas. Na sua lídima interpretação, a artista propõe-se através da INSTALAÇÃO, da ESCULTURA, do DESENHO e dos seus cruzamentos, explorar materiais e técnicas, bem como ao próprio espaço, transmitindo os conceitos de Essência – Impermanência – Leveza. Assumindo a problemática contemporânea no que ela tem de mais generalizado, o seu material de base e constituinte das peças apresentadas, é a rede metálica maleável, de um cinza brilhante, proveniente de sobras de construção ou de utilização doméstica. O método de construção das peças, segundo a autora, começa: “(…) pela submissão dos tecidos de rede a movimentos de tracção e de compressão, bem como ao seu desfiar (total ou parcial) para, posteriormente, serem reconstituídos em formas circulares ou curvilíneas, de um ou vários layers”. No processo construtivo adoptado de criação de múltiplas estruturas através de reprodução modular, encontra a autora paralelo com a auto-replicação da Natureza. (…) É preciso pedir que as ilhas sejam fortes para que lá estejam enquanto nos perdemos para que em silêncio permaneçam mesmo quando alguém procura um canto no meio da multidão. (…) Evocação das Ilhas mais remotas, em A NUVEM Carlos Poças Falcão Só isto bastaria para situarmos a autora e as suas propostas num contexto de reivenção e de valorização do eternamente outro-sendo o mesmo, no que alguns adoptando terminologias de recentíssima extracção, designam como de “computador quântico universal”. A titulação das peças apresentadas, se recupera conceitos do Ecclesiastes, adquire aqui uma carga poética, seguramente desejada pela autora. Exemplifico: “Uma geração vem, outra vai”; “O que foi isso é o que há-de ser”; “Tempo de nascer”; “Na multidão dos sonhos, há vaidades”; “Tudo quanto desejaram os meus olhos, não lhes neguei”; “Todos os rios vão dar ao mar, contudo ele não se enche”. Carga poética, que este Livro de culto e do Culto, numa circularidade quase epicurista, não deixa de possuir. Não quero terminar esta curta introdução a uma exposição de Arte desta dimensão, sem referir excelente texto do Pe. João Norton de Matos, em Catálogo de Exposição datada de 2014, com participação de alguns artistas conhecidos. Disse ele então, a concluir: “(…) O artista deseja hoje testar as conotações espirituais das suas obras, nas quais procura uma outra concepção de ser humano, não mediatizado, não avaliado economicamente, não consumido como produto, mas deixando espaço ao silêncio, à escuta, ao acolhimento, ao espanto e mesmo ao êxtase.” Não saberia terminar melhor!
Caxias, 25.04.2021
Jaime Silva
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Nasceu em Lisboa em1960. Licenciada em Arquitectura (1985) pela Escola de Belas Artes de Lisboa (ESBAL). Foi Bolseira do Instituto de Arte Contemporânea (IAC) e do Instituto Camões. Atualmente é Embaixadora da Canson em Portugal e leciona na Sociedade Nacional de Belas Artes (Lisboa), da qual é membro da direcção desde 2017.
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