A cidade de Macondo, uma criação do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, no seu best-seller "Cem Anos de Solidão", é um lugar de debate e mistério. Aninhada algures no húmido e quente Caribe colombiano, com abundância de bananas e o doce aroma das goiabas, a sua verdadeira identidade é objeto de especulação. Será uma cidade real? Alguns defendem que Macondo é Aracataca, a cidade onde o próprio Márquez cresceu.
Macondo foi o lar de sete gerações dos Buendía. Quem são os Buendía? Os Buendía são os habitantes latino-americanos? Os Buendía personificam estereótipos de comportamentos comuns a todos os géneros humanos. No entanto, esta exposição pretende mostrar que, embora, de certo modo, Macondo esteja em todo o lado e em todo o lado haja um pouco de Macondo, há ainda um elemento de Macondo que está no ADN do povo latino-americano: o Realismo Mágico. Cem Anos de Solidão, com o seu realismo mágico, é o primeiro romance em que os latino-americanos se reconhecem. Além disso, define-os. Celebra a sua paixão, intensidade, espiritualidade, superstição e propensão para o fracasso.
O Realismo Mágico, um termo cunhado para descrever a mistura única de elementos mágicos com cenários e personagens realistas, é uma característica fundamental da obra de Márquez.
Paradoxalmente, as raízes do Realismo Mágico de Márquez estão na Europa, particularmente na metamorfose de Kafka. Garcia Márquez, numa entrevista a Peter Stone em “A Arte da Ficção”, de 1981, disse sobre Kafka: “Não sabia que alguém tinha autorização para escrever coisas deste género. Se soubesse, já teria começado a escrever há muito tempo. Então, comecei imediatamente a escrever contos.” Esta influência europeia, aliada à perspetiva única de Márquez como escritor latino-americano, contribuiu para a criação de Macondo e para o desenvolvimento do seu estilo literário distinto.
A viagem de Márquez até Macondo também se reflete na sua paixão pelo cinema. Viajou para Itália em 1955 como jornalista para cobrir o 16º Festival de Cinema de Veneza e passou muito tempo em Roma, na Cinecittà. O seu cineasta favorito era De Sica, e o seu escritor favorito era Zavattini. Zavattini, um mestre do neorrealismo, influenciou profundamente a escrita de Márquez. Encontrou inspiração no filme "Milagre em Milão", que aprofundava as ideias do Realismo Mágico. Márquez afirmou: “Sou filho de Zavattini, que era uma máquina de inventar enredos; Zavattini fez-nos compreender que os sentimentos são mais importantes do que os princípios intelectuais”.
De Kafka ao pós-guerra italiano, do Neorrealismo ao Milagre em Milão, escrito por Zavattini, Márquez construiu a aldeia de Macondo para as sete gerações dos Buendía. Esta influência da literatura kafkiana do leste europeu e do cinema italiano, aliada à utilização singular do realismo mágico por Márquez, faz de Macondo um espelho de todo o lado. É um lugar que ressoa em leitores de todos os cantos do globo, uma narrativa na qual todos podem encontrar um pedaço de si mesmos, fazendo-os sentir-se incluídos e parte de uma história maior e universal.
A paixão de Márquez pelo cinema, que durou toda a sua vida, levou-o a criar a Fundação Latino-Americana de Cinema em 1986. Este passo significativo, localizado em Santo Antonio de los Baños, perto de Havana, não só impulsionou a produção continental, como também fomentou a unidade latino-americana. O seu compromisso foi ainda mais consolidado com a inauguração da Escola Internacional de Cinema e Televisão a 15 de dezembro. A crença de Márquez no potencial transformador do cinema, que supera o da literatura, é uma prova do poder e do potencial do meio.
O legado que Márquez deixou em Cuba foi mais do que a literatura, o cinema ou a televisão; tocou diretamente a alma de vários artistas das artes plásticas; o exemplo mais marcante é um dos seus amigos da vida e do bolero, Roberto Fabelo. Um dos resultados desta intensa amizade foi a edição de 2007 dos Cem Anos de Solidão (para celebrar o 80º aniversário de Márquez), ilustrada por Fabelo. Mais do que uma colaboração, a obra de Fabelo está de algum modo imbuída do sonho, do mistério e da magia do realismo mágico.
Nesta exposição, temos o prazer de apresentar obras de arte da coleção Luciano Mendez. Ao longo de duas décadas, o colecionador Luciano visita ateliers de artistas, selecionando meticulosamente obras de arte autênticas que personificam a alma e a magia de Cuba. A arquitetura de Havana, captada por Luis Enrique Camejo, parece transcender o tempo nas suas telas. Num século, seria preferível reconhecer Havana por meio da arte de Camejo em vez de fotografias realistas, um testemunho das perspetivas únicas dos nossos artistas em destaque.
A jovem artista pós-pop Daniela Aguila opta por trazer as suas personagens femininas para um mundo idealizado, mantendo um pé dentro da realidade. As suas personagens femininas originais parecem ter saído do livro Cem Anos de Solidão; umas parecem sonhar de olhos abertos, outras voar com os seus guarda-chuvas como fez Remedios La Bella no livro, e algumas convidam-nos a um universo paralelo.
O tema da solidão é retratado de forma pungente na tela de Javier Barreiro. Com um profundo conhecimento da história da arte e do brilhantismo de grandes mestres como Goya, Javier dialoga com as sete gerações dos Buendía. A sua conclusão é sóbria: nem o poder do Realismo Mágico consegue resgatar os Buendía da profunda condição de solidão. Este tema contemplativo convida o público à introspeção e à imersão nas camadas mais profundas da exposição.
Andréa Pastore
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